quinta-feira, 27 de março de 2014

7º ano - Leitura - Crônica

Segunda-feira, início da Semana literária no colégio, o apito soará para que a Literatura entre em Campo!
Vocês participarão de um Quiz ao longo da semana. Vamos nos preparar?
Os textos selecionados para essa atividade serão três crônicas: O Triunfo do Homem; Campeões do Mundo; e Dragões de Espora e Penacho. Os textos são todos do livro À Sombra das Chuteiras Imortais, de Nelson Rodrigues.





Brasil 3 x 1 Tcheco-Eslováquia (Tchecoslováquia), 17/6/1962, Estádio Nacional de Santiago, Chile. Jogo final da Copa.

BICAMPEÕES DO MUNDO

(por Nelson Rodrigues)

Amigos, estamos atolados na mais brutal euforia. Ontem, quando rompia a primeira estrela da tarde, o Brasil era proclamado bicampeão do mundo. Foi um título que o escrete arrancou de suas rútilas entranhas. E, a partir da vitória, sumiram os imbecis, e repito: — não há mais idiotas nesta terra. Súbito o brasileiro, do pé-rapado ao grã-fino, do presidente ao contínuo, o brasileiro, dizia eu, assume uma dimensão inesperada e gigantesca. O bêbado tombado na sarjeta, com a cara enfiada no ralo, também é rei. Somos 75 milhões de reis. 

De sábado para domingo houve a feérica vigília do triunfo. Ninguém tinha dúvidas. Aí é que está, ninguém tinha dúvidas. E sofríamos porque há também a angústia da certeza. Mas eu falava da grande véspera. Lotes de macumbas nas esquinas, botecos iluminados como velórios. Vinte e quatro horas antes da batalha, já tropeçavam na rua os bêbados da vitória. Amigos, nunca foi tão fácil ser profeta. 

Outrora o brasileiro era um inibido até para chupar Chica-bon. Agora não. Cada um de nós foi investido de uma vidência deslumbrante. Nós sentíamos o bi, nós o apalpávamos, nós o farejávamos. E, a partir de ontem, vejam como a simples jovem tem todo o élan, todo o ímpeto, toda a luz de uma Joana d’Arc. De repente, todas as esquinas, todos os botecos, todas as ruas estão consteladas de Joanas d’Arc. E os homens parecem formidáveis como se cada um fosse um são Jorge a pé, um são Jorge infante, maravilhosamente infante. 

Mas falemos do escrete. Esse time de negros ornamentais, folclóricos, divinos deslumbrou o mundo. Foi o mais belo futebol que jamais olhos humanos contemplaram. Perdemos um Pelé. Mas o Brasil vive um momento de tão selvagem euforia que imediatamente descobrimos um novo Pelé. E repito: — feliz o povo que, na vaga de um gênio, põe outro gênio. Amarildo, o “Possesso”, surgiu contra a Espanha. É o novo Pelé proclamado. 

Amigos, o Brasil fez no Chile um sofrido futebol, um futebol quase feio, um duro futebol de cara amarrada. Jogávamos para vencer. Amarildo, o dostoievskiano, enfiava-se pela área como um rútilo epiléptico. Ao marcar os dois gols contra a Espanha pendia dos seus lábios uma baba elástica e bovina. E Garrincha? Foi o gênio duplo do escrete. E, com efeito, foi genial por ele e por Pelé. Vocês se lembram dos seus dois gols contra o Chile. O Mané estava na meia esquerda. No primeiro gol, ele se tornou leve, elástico e acrobático. Deu uma cabeçada que enterrou o Chile. 

O gênio soprava, o gênio ventava por todo o escrete. E ontem foi uma jornada deslumbrante. Os tchecos abriram o escore. 1 x 0. Setenta e cinco milhões de brasileiros perguntavam um ao outro: — “Vamos repetir 50?”. Mas a derrota de 50 liquidou o Brasil da derrota. O que eu quero dizer é que, em seguida ao gol da Tcheco-Eslováquia, Amarildo apanhou a bola. Nos dois últimos jogos ele fora bem pouco Amarildo e bem pouco “Possesso”. Desta vez, porém, partiu para a Copa. Antes que o adversário pudesse esboçar o ferrolho, Amarildo dribla um, dribla dois. O goleiro adversário sai para cortar o centro. Era chegado o grande momento. E então o “Possesso” enfia a sua bomba entre o goleiro e a trave. A bola, também possessa, foi se cravar no fundo das redes. Parecia apenas o empate, mas era já o bi. O trágico é que começara de véspera o carnaval da vitória. Nunca um povo teve uma certeza tão violenta e tão possessa. O escrete tinha de vencer porque não era somente o escrete, era também o Brasil, era também o homem brasileiro.

No segundo gol, ainda Amarildo, ainda o “Possesso”. Nunca o “Possesso” foi tão dostoievskiano como no segundo gol. Novamente adernou para a esquerda. Nenhuma força humana ou divina poderia quebrar-lhe o ímpeto sagrado. Driblou não sei quantos. Lá estava Zito. E o “Possesso” deu-lhe o gol. Brasil 2 x 1. Batida a Tcheco- Eslováquia. O terceiro gol veio de uma bola alta de Djalma Santos. Vavá, furioso como um cossaco do Don, meteu a cabeça. A Tcheco- Eslováquia estrebuchou e pôs fogo pelas narinas, como o dragão de são Jorge.

Setenta e cinco milhões de brasileiros profetizaram o triunfo. Amigos, depois da vitória não me falem na Rússia, não me falem nos Estados Unidos. Eis a verdade: — a Rússia e os Estados Unidos começaram a ser o passado. Foi a vitória do escrete e mais: — foi a vitória do homem brasileiro, ele sim, o maior homem do mundo. Hoje o Brasil tem a potencialidade criadora de uma nação de napoleões.

[O Globo, 18/6/1962]

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